13.10.09

História do Teatro de Papel por Dorothea Reichelt

Aqui um texto interessante sobre a história do teatro de papel por Dorothea Reichelt

Seja qual for o local em que nos encontremos hoje em dia, estamos rodeados de papel A utilização quotidiana do papel – seja em forma de jornal, de cartaz, papel para impressora, papel higiénico, bilhete de cinema, bilhete de teatro – apagou há muito tempo a magia que o papel outrora exerceu sobre as pessoas em virtude de todas as possibilidades de utilização que permitia.Apesar de hoje ser utilizado como objecto quotidiano e descartável, e de ter assim perdido uma parte do seu significado, convinha, no entanto, não esquecer que o papel teve um lugar de primeira ordem no desenvolvimento da nossa civilização. Um pequeno elemento deste mosaico na história da cultura ao longo dos séculos é o Teatro de Papel. Em finais do séc. XIX podia ser encontrado em quase todas as famílias.

O Teatro de Papel

O Teatro de Papel é um teatro em miniatura. Toma como referência o verdadeiro teatro e tenta copiá-lo, não só naquilo que se refere à técnica cénica e ao ambiente mas também no que diz respeito ao repertório. Os princípios do Teatro de Papel remontam ao fim do séc. XVIII. No primeiro número da sua publicação semanal O Amigo das Crianças, em 1775, Christian Felix Weisse evoca “os aspectos agradáveis e divertidos de um pequeno teatro para crianças. Fazem-se representações com este pequeno brinquedo nos dias de festa, ou seja, em aniversários e ocasiões semelhantes”. Peças apropriadas para os pequenos teatros, a maior parte das vezes de conteúdo moralizador, surgiram nessa publicação. No fim do séc. XVIII o editor J.M. Weiss publicou nos seus folhetos, em Augsburg, algumas destas pequenas peças com personagens. As figurinhas eram feitas para recortar e brincar. São um elemento importante que faz a ligação entre as marionetas de mão ou de fio anteriores e o Teatro de Papel, mais recente. É evidente que o Teatro de Papel se distingue em muitos aspectos do teatro de bonecos, de personagens com volume capazes de movimento. Na maneira de actuar e na adaptação artística, o teatro de bonecos segue leis próprias, enquanto que o Teatro de Papel se mantém muito próximo do teatro real e constitui, portanto, um verdadeiro teatro em miniatura. O Teatro de Papel, no sentido restrito do termo, deve ser interpretado como um fruto típico da época romântica.Teve na sua origem a grande paixão pelo teatro sentida pela alta burguesia no séc. XIX, e servia para reproduzir no seio das famílias as peças de teatro célebres e que tinham tido sucesso nos grandes palcos, e também para as tornar acessíveis e visíveis às crianças. É constituído por decorações como o fundo de cena e os bastidores laterais, uma cortina e um proscénio, e figurinhas em papel. Estes elementos eram apresentados sobre grandes folhetos impressos, colados sobre cartão, recortados e montados para com eles se fazer um palco sobre uma armadura de madeira. As figurinhas de papel, de 9 a 13 centímetros, reproduziam inicialmente os actores da época, quer nos figurinos quer na fisionomia. Eram fixadas em pequenos pedaços de madeira e deslocavam-se sobre o palco com a ajuda de um fio, quer por cima quer pelos lados.O estilo do Teatro de Papel corresponde à disposição dos bastidores na época barroca ou então às cenas em trompe-l’oeil que se podem ver ainda em alguns velhos teatros como Drottningholm ou Böhmisch-Krumau. A instalação técnica da maquinaria de cena era muitas vezes reproduzida nos teatros de papel.As condições técnicas prévias para que o Teatro de Papel se pudesse difundirSe o Teatro de Papel se conseguiu assim desenvolver e difundir tão rapidamente no séc. XIX foi graças a duas invenções que contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento da cultura moderna: por um lado, a evolução técnica do fabrico do papel com o início da era industrial e, por outro lado, o facto de a produção em massa se ter tornado possível com a invenção da litografia, em substituição da gravura em cobre que apenas permitia um número restrito de impressões. [...]

Os precursores do Teatro de Papel

As estruturas que estão na origem do Teatro de Papel podem ser encontradas nos presépios de papel, nos desdobráveis e nas pequenas caixas panorâmicas de cartão, especialidade de Augsbourg. O ponto comum a todos eles é o facto de serem fabricados em papel, a partir de uma vontade individual, de se referirem a um tema encenado de uma forma próxima da cena real, num espaço tridimensional, e de poderem ser modificados.O presépio de papel tem as suas raízes essencialmente na Áustria e na Baviera. No séc. XVIII e, por maioria de razão, no séc. XIX encontrava-se já no seio de numerosas famílias.Rapidamente se encontraram vantagens económicas neste presépio: figurinhas planas recortadas em papel e mantidas em pé com a ajuda de uma pequena haste de madeira colocada por trás, por oposição às personagens com volume colocadas em primeiro plano. Na Boémia e na Morávia, os “pintores de bonecos” fabricavam as figurinhas para os presépios e outras cenas. Nesta mesma época, as pequenas caixas panorâmicas adquiriram também a sua celebridade, porque permitiam às pessoas satisfazer os seus novos hábitos de ver, o seu desejo de perspectiva. “A expansão destas pequenas caixas está confirmada desde o princípio do séc. XVIII. Inicialmente expostas como atracções nas feiras, foram em seguida fabricadas para uso particular, primeiro em Augsbourg e depois em Paris. Mais uma vez é o fabrico de Martin Engelbrecht (em Augsbourg, 1684-1756), que assume uma grande importância.As suas caixas, com pequenas cenas graciosas, estão de tal forma próximas do teatro em miniatura que não podemos ignorar o seu carácter exemplar. Essas caixas em miniatura, amplamente difundidas e fabricadas a partir de gravuras coloridas, imitavam os bastidores dos palcos do teatro barroco, com seis profundidades de campo ou mais, e um fundo de cena. Os grupos de figurinhas fixas evocavam temas religiosos ou mitológicos, cenas de caça, festas de corte ou campestres, passeios de trenó e mesmo cenas de ópera ou de comédia. Destinavam-se ao divertimento de um público aristocrata”. (Sigrid Metken, Geschnittenes Papier: Eine Geschichte des Ausschneidens in Europa von 1500 bis heute, Hamburgo, 1978, pág. 253.)

O teatro e a sociedade

A época que se seguiu à Revolução Francesa teve como efeito, também no império alemão, reformas que, no entanto, apenas conseguiram penetrar em raros domínios, essencialmente culturais: o teatro e a literatura. A burguesia continuava largamente excluída do poder político. O desaparecimento progressivo da divisão política em pequenos espaços através da criação de um Estado nacional não conseguia concretizar-se, e as esperanças que os círculos burgueses e democráticos tinham depositado nas guerras de libertação foram aniquiladas pelas forças da Restauração depois do Congresso de Viena, em 1815.A burguesia resignou-se e procurou outros ideais, na glorificação da vida privada: a família, a valorização do interior, o conforto e a cordialidade. O modo de vida do “Biedermeier” tornou-se a expressão típica do estado de espírito da época. A tendência para a retirada do “mundo exterior” foi reforçada devido às modificações económicas produzidas pelo início da industrialização. O domínio profissional e a vida familiar, dos quais a casa tinha sido até àquele momento a sede, ficaram separados e desenvolveram-se a partir desse momento em espaços diferentes: a vida privada em casa e a vida profissional na empresa. E daí decorreram modificações nas relações entre os membros da família. De comunidade de produção, a família transformou-se em comunidade de educação, de formação e de consumo. Era essencialmente a mulher quem dirigia a casa, enquanto o homem assumia, no exterior da casa, as suas funções profissionais. Atribui-se também um novo valor à infância e à juventude, que pela primeira vez foram reconhecidas como uma fase no desenvolvimento da vida, com as suas leis e as suas necessidades. Neste contexto, os domínios de aprendizagem, centrados essencialmente em torno da formação do “bel esprit”, assumiram uma importância capital e serviram como meio para a realização de cada um e para o reforço da consciência da classe burguesa.Como o teatro constituía um dos raros domínios acessíveis à burguesia no fim do séc. XVIII – como testemunha a criação de teatros nacionais: Mannheim (1778), Berlim (1786), Munique (1811-1818), Dresden (1838-1841) – assumiu, portanto, uma grande importância como estrutura que permitia o acesso à cultura. O burguês sequioso de cultura encontrava no teatro uma compensação para as actividades políticas que lhe estavam vedadas. A descrição de Heinrich Heine caracteriza este público de teatro alemão com um grande rigor: “Na plateia alemã estão sentados cidadãos pacíficos, funcionários, que têm realmente a intenção de aí digerir tranquilamente a sua choucroute, e lá em cima, nos camarotes, encontramos as raparigas de olhos azuis da nobreza, belas almas loiras que trouxeram para o teatro o seu tricot ou outro trabalho qualquer, e que querem sonhar docemente sem no entanto deixar cair nenhuma malha. E todos os espectadores possuem esta virtude alemã que nos é dada à nascença ou, pelo menos, pela nossa educação, que é a paciência”. (Heinrich Heine, Obras Completas, vol. 3, Darmstadt, 1971, pág. 300.)O entusiasmo pelo teatro nesta época está na origem de objectos de culto próprios. Os actores, que noutros tempos eram um povo sem domicílio, sem reconhecimento social e sem nenhum direito, foram adorados e celebrados como artistas, os seus figurinos suscitavam a admiração, as brochuras reproduziam-nos e difundiam-nos largamente no seio da população. As maquetas de palco dos intendentes dos teatros berlinenses, August Wilhelm Iffland e o Conde Karl Moritz von Brühl, serviram de modelo para estas brochuras de figurinos de teatro, que foram impressas em Nuremberga a partir de 1807 por Johann Raab, Friedrich Campe e Georg Nikolaus Renner. Já não faltava mais do que um pequeno salto para passar da contemplação pura e simples destes folhetos à construção de um Teatro de Papel para poder brincar em casa. Para as necessárias decorações de teatro (fundo de cena, bastidores) utilizaram-se inicialmente as maquetas de palco de Karl Friedrich Schinkel e Karl Wilhelm Gropius em Berlim.

O repertório

As peças que foram representadas nesses teatros de papel correspondiam em geral às encenações dos grandes palcos europeus. O teatro clássico assume aqui um lugar preponderante. De Johann Wolfgang von Goethe representaramse essencialmente Fausto e Götz von Berlichingen. As peças de Friedrich von Schiller foram também muito apreciadas, sobretudo Os Salteadores, Guilherme Tell ou Wallenstein. Mas a peça Kätchen von Heilbronn, de Kleist, um grande sucesso público, abriu igualmente um caminho no repertório do Teatro de Papel. A ópera também foi representada com vários títulos: as óperas de Wolfgang Amadeus Mozart, como A Flauta Mágica, As Bodas de Fígaro e Don Giovanni. Der Freischütz, de Carl Maria von Weber, foi sem dúvida a mais representada de todas as óperas para Teatro de Papel, porque todos os editores de ilustrações mandaram imprimir as figurinhas correspondentes. Outras óperas conheceram igualmente um grande sucesso: La Fille du régiment, de Gaetano Donizetti, Zar und Zimmermann, Der Waffenschmied e Undine, de Albert Lortzing, e Martha, de Friedrich von Flotow, por exemplo. Tannhäuser e O Holandês Voador, de Richard Wagner, tiveram igualmente os seus admiradores. O teatro de boulevard – a farsa, a peça popular e a opereta – está representado por pequenas peças de Johann Nestroy e Ferdinand Raimund, Lumpazivagabundus do primeiro, e Der Alpenkönig und der Menschenfeind do segundo. Im Weissen Rössl, peça ligeira de Hans Müller, ou as operetas Flotte Burschen, de Franz Von Suppé, e Der Zigeunerbaron, de Johann Strauss, pertenciam igualmente ao programa dos palcos em miniatura. De teatro em miniatura, o Teatro de Papel transformou-se, no fim do séc. XIX, em teatro para crianças, e a encenação de contos, lendas e peças de Natal surgiu no lugar do repertório de teatro habitual. É certo que, desde o princípio, se aceitaram as crianças como espectadores, mas no início da época do Teatro de Papel não havia peças para crianças propriamente ditas. A partir da segunda metade do século, reconheceram-se, paralelamente ao papel educativo do teatro, os aspectos criativos que ele podia também suscitar nas crianças, e foi só nessa altura que o Teatro de Papel se tornou um brinquedo dedicado às crianças. As representações tradicionais e os conteúdos culturais podiam continuar a ser transmitidos. Em 1878, o editor J.F. Schreiber de Esslingen lançou no mercado o primeiro verdadeiro teatro para crianças, com o qual elas poderiam criar as suas próprias representações. Com este objectivo, modificaram-se os textos originais das peças e reescreveram-se as mesmas numa versão reduzida, simplificada e purificada segundo a opinião da época, tanto do ponto de vista moral como linguístico. A lista dos títulos dos 69 libretos comercializados para o teatro de Schreiber atesta bem esta evolução.

Os editores do Teatro de PapelEm Inglaterra

O primeiro editor que realmente começou a produzir folhetos para o Teatro de Papel foi o gráfico William West, em Londres, em 1881. Estes teatros eram efectivamente destinados a que se pudesse brincar com eles. Ao longo dos anos vieram juntar-se a ele os editores Skelt, Webb, Redington e Pollock, ou melhor, assumiram a sucessão uns dos outros. O sucesso surpreendente destes primeiros folhetos desencadeou outras edições, que se inspiraram em encenações populares dos palcos londrinos de Covent Garden e Drury Lane. Com este objectivo, alguns desenhadores faziam esboços de decorações e figurinos, por altura dos ensaios gerais, e no momento das representações eram postas à venda as maquetas dos palcos sobre os quais as pessoas podiam voltar a representar a peça.A designação “Toy Theatre” (teatro-brinquedo) ou “Juvenile Drame” (teatro para crianças) mostra qual o tipo de público a quem estas brochuras eram destinadas, ou seja, a juventude. 500 peças no total, 150 só de William West, foram objecto de comercialização. Ao lado dos dramas de Shakespeare e das adaptações dos romances de Walter Scott, a história de salteadores de Isaac Pocock, criada em 1813 em Covent Garden, The Miller and His Men, atingiu a tiragem mais elevada, com nada menos do que 40 edições diferentes. Embora o “Toy Theatre” fosse destinado às crianças e aos jovens, nunca – ao contrário da Alemanha – se publicou uma peça especial para crianças. Robert Louis Stevenson descreve, no capítulo “A Penny Plain and Twopence Coloured” do livro Memories and Portraits, a impaciência tingida de alegria que sentia de cada vez que comprava novas brochuras. Um folheto a preto e branco custava um penny, a cores custava o dobro. Ao contrário da Alemanha, onde o Teatro de Papel funcionava essencialmente como objecto de distracção e de jogo para a camada mais elevada da burguesia, em Inglaterra visava antes de mais os jovens do meio operário, artesão e pequeno-burguês. Estes jovens não tinham dinheiro para ir ao teatro e apenas podiam adquirir pequenas brochuras baratas. Até 1860 foram constantemente acrescentadas ao repertório novas peças, após o que nenhuma outra foi produzida, apesar de se continuarem a reeditar as antigas. Ainda hoje se pode comprar em Inglaterra um “Original Pollock Toy Theatre”. [...]

Como se brincava com o Teatro de Papel em família?

Depois de se terem comprado os tão desejados folhetos de teatro, ou depois de as crianças os terem recebido de presente, era muitas vezes toda a família que se sentava à mesa para repartir o trabalho de recortar, colar e montar. Na montagem particularmente delicada do esqueleto do teatro com o proscénio, era sobretudo o pai quem ajudava. Não era raro que este trabalho fosse também confiado a um marceneiro. Os ensaios, numa fase posterior, exigiam a colaboração activa de todos os membros da família para manipular as personagens, ler o texto ou fazer o acompanhamento ao piano.A maior parte das vezes era para as festas, sobretudo o Natal, que se fixava a data da estreia. Habitualmente, o teatro tinha o seu lugar na sala de estar. Os espectadores ficavam sentados, cheios de impaciência, em frente ao proscénio e o pessoal doméstico tinha também ocasionalmente autorização para assistir ao espectáculo. Regra geral, os rapazes e o pai assumiam a direcção do teatro, a gestão dos acessórios, a iluminação do palco e todas as manipulações técnicas, ou seja, tudo o que era necessário para a vida do teatro, enquanto que as raparigas tinham preferencialmente as casinhas de bonecas para se iniciarem no papel de futura esposa e mãe. A dramaturgia dos acontecimentos no palco era transmitida mais pelos efeitos técnicos, como raios e trovões, do que pelo movimento das figurinhas de papel que, de facto, não podiam fazer muito mais do que agitar-se ligeiramente ou balançar de um lado para o outro no momento em que falavam. Podemos dar-nos conta, ao ler as memórias de juventude de homens célebres desta época, até que ponto estes momentos de teatro marcaram a alma e o carácter das crianças de então. Ludwig Tieck, Wilhelm von Kügelgen, Felix Dahn ou Thomas Mann contam essas memórias, que muitas vezes deixaram marcas para a vida inteira.Na novela Der Bajazzo, de Thomas Mann, o leitor fica a conhecer o fervor e o entusiasmo com que o escritor brincava com o seu teatro quando era pequeno. Escreveu ele: “Trata-se de um grande teatro de bonecos, muito bem equipado, com o qual eu me encerrava sozinho no meu quarto para montar os mais extraordinários dramas musicais. Puxava as cortinas e pousava um candeeiro ao lado do teatro, porque a iluminação artificial me parecia necessária para tornar a atmosfera mais intensa. Instalava-me mesmo em frente ao palco, era eu o chefe de orquestra, com a mão esquerda pousada sobre uma grande caixa redonda de cartão, que constituía o único instrumento de orquestra visível. Chegavam então os artistas que participavam na obra, tinha-os eu próprio desenhado com pena e tinta, tinhaos recortado e tinha-lhes colado uns pequenos paus de madeira para que se pudessem manter em pé. Eram senhores de casaco e chapéu alto, e senhoras de uma grande beleza. ‘Boa-noite, minhas senhoras e meus senhores, dizia-lhes, estão preparados? Eu já aqui estou porque ainda havia alguns problemas para resolver. Já vai sendo tempo de se dirigirem aos camarins e de se arranjarem’. Dirigíamo-nos então aos camarins, que se encontravam atrás do palco, saíamos de lá rapidamente, completamente transformados em figurinhas de teatro coloridas, e íamos informar-nos sobre a ocupação da sala, observando-a através do buraco recortado na cortina do palco. A sala, com efeito, estava convenientemente cheia; eu dava um pequeno toque de campainha para indicar o início da representação, após o que erguia a batuta e me deleitava por um instante com o profundo silêncio que este gesto suscitava. A um novo gesto da minha batuta, porém, começava a soar o surdo e misterioso rufar do tambor, que anunciava o início da abertura, e que eu executava com a mão esquerda sobre a caixa de cartão. Os trompetes, os clarinetes e as flautas, cuja tonalidade eu sabia muito bem imitar com a boca, soavam então, e a música continuava a tocar até ao momento em que, num crescendo poderoso, a cortina se erguia e o drama começava, na obscuridade de uma floresta profunda ou no esplendor de uma habitação. Esta história tinha-a eu imaginado em pensamento, mas tinha de ser improvisada nos detalhes, e os cantos apaixonados e doces que iam ganhando forma, acompanhados pelos trinados dos clarinetes e pelo ribombo dos tambores, eram versos estranhos e sonoros, cheios de grandes palavras audaciosas que rimavam por vezes mas que, no entanto, só raramente faziam sentido. Mas a ópera continuava, ao mesmo tempo que eu batia no tambor com a mão esquerda, cantava com a boca e, com a mão direita, não só movimentava as figurinhas que representavam mas dirigia também tudo o resto com um cuidado infinito. Isto fazia com que no fim de cada acto ressoassem uns aplausos entusiastas, pelo que era necessário abrir a cortina por várias vezes, e que ocasionalmente fosse necessário que o director da orquestra se voltasse no seu pódio e agradecesse à sala, ao mesmo tempo orgulhoso e lisonjeado. De facto, quando após uma representação tão extenuante eu arrumava o meu teatro com a cabeça a arder, sentia-me invadido por uma lassidão tão feliz como aquela que devia experimentar o verdadeiro artista depois de ter terminado com sucesso uma obra na qual teria posto o melhor de si próprio. Este jogo continuou a ser o meu passatempo favorito até chegar aos treze ou catorze anos”. (Thomas Mann, Récits, vol. 1, Frankfurt, 1975.)

O Teatro de Papel nos nossos dias: um anacronismo?

Hoje em dia o Teatro de Papel perdeu os seus atractivos e caiu no esquecimento enquanto objecto e meio de educação estética. Mas é ainda capaz de proporcionar prazer e divertimento àqueles que sabem avaliar a magia dos objectos propostos para a aprendizagem e aquisição de experiência graças à sua criatividade e imaginação. [...] Hoje em dia, o Teatro de Papel é ainda capaz de sensibilizar para o jogo da representação ou para o teatro em geral; a sua complexidade – que resulta de uma experimentação através do jogo, do facto de pôr simultaneamente em contacto forma, conteúdo, imagem, língua e música – contribui para isso. Porque este teatro pode modificar e tornar mais dinâmicos os nossos hábitos de percepção, o nosso comportamento de telespectador essencialmente sensível ao consumo, à sensação e à selecção, ou seja, incitar-nos a participar pelo pensamento e pelo jogo. É claro que o Teatro de Papel, com a sua ingenuidade tocante, não se propõe assumir o lugar da televisão ou do computador, mas constitui um enriquecimento que estimula a imaginação e a criatividade. Continua palpável, previsível e próximo, e faz participar no jogo, de uma forma activa, tanto o espectador como o actor.”

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